quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Como se formou o poder monárquico-absolutista dos papas


A crise da Igreja-instituicão-hierarquia se radica na absoluta concentração de poder na pessoa do papa; poder exercido de forma absolutista, distanciado de qualquer participação dos cristãos e criando obstáculos praticamente intransponíveis para o diálogo ecumênico com as outras Igrejas.

Não foi assim no começo, quando a Igreja era uma comunidade fraternal. Não havia ainda a figura do papa. Quem comandava na Igreja era o imperador, pois ele era o sumo pontífice (pontifex maximus), e não o bispo de Roma ou de Constantinopla, as duas capitais do Império. Assim, o imperador Constantino convocou o primeiro concílio ecumênico, em Nicéia (325), para decidir a questão da divindade de Cristo. Ainda no século VI, o imperador Justiniano, que refez a união das duas partes do império, a do Ocidente e a do Oriente, reclamou o primado de direito para si e não para o bispo de Roma. No entanto, pelo fato de em Roma estarem as sepulturas de Pedro e de Paulo, a Igreja romana gozava de especial prestígio, bem como o seu bispo, que diante dos outros tinha a “presidência no amor” e “exercia o serviço de Pedro” - o de “confirmar na fé”- e não a supremacia de Pedro no mando.

Tudo mudou com o papa Leão I (440-461), grande jurista e homem de Estado. Ele copiou a forma romana de poder, que é o absolutismo e o autoritarismo do imperador. Começou a interpretar em termos estritamente jurídicos os três textos do Novo Testamento atinentes a Pedro: Pedro como pedra sobre a qual se construiria a Igreja (Mt 16,18); Pedro, o confirmador da fé (Lc 22,32); e Pedro como pastor que deve tomar conta das ovelhas (Jo 21,15). O sentido bíblico e jesuânico vai numa linha totalmente contrária: a linha do amor, do serviço e da renúncia a toda honraria. Mas predominou a leitura do direito romano absolutista. Consequentemente, Leão I assumiu o título de sumo pontífice e de papa em sentido próprio. Logo após, os demais papas começaram a usar as insígnias e a indumentária imperial (a púrpura), a mitra, o trono dourado, o báculo, as estolas, o pálio, a cobertura de ombros (mozeta), a formação dos palácios com sua corte e a introdução de hábitos palacianos, que perduram até os dias de hoje nos cardeais e nos bispos, coisa que escandaliza não poucos cristãos que leem nos Evangelhos que Jesus era um operário pobre e sem aparato. Então, começou a ficar claro que os hierarcas estão mais próximos do palácio de Herodes do que da gruta de Belém.

Mas há um fenômeno para nós de difícil compreensão: no afã de legitimar esta transformação e de garantir o poder absoluto do papa, forjou-se uma série de documentos falsos. Primeiro, uma pretensa carta do papa Clemente (+ 96), sucessor de Pedro em Roma, dirigida a Tiago, irmão do Senhor, o grande pastor de Jerusalém, na qual ele dizia que Pedro, antes de morrer, determinara que ele, Clemente, seria o único e legítimo sucessor. Bem como, evidentemente, os demais que viriam depois dele. Falsificação maior foi ainda a famosa “Doação de Constantino”, um documento forjado na época de Leão I, segundo o qual Constantino teria dado ao papa de Roma, como doação, todo o império romano. Mais tarde, nas disputas com os reis francos, se criou outra grande falsificação: as “Pseudodecretais de Isidoro”, que reuniam falsos documentos e cartas, como se viessem dos primeiros séculos, as quais reforçavam o primado jurídico do papa de Roma. E tudo culminou com o “Código de Graciano”, no século XIII, tido como base do direito canônico, mas que se embasava em falsificações de leis e normas, que reforçavam o poder central de Roma, além de cânones verdadeiros que circulavam pelas igrejas. Logicamente, tudo isso foi desmascarado mais tarde, sem, todavia, qualquer modificação no absolutismo dos papas. Tudo isso é lamentável, mas um cristão adulto precisa conhecer os ardis forjados e usados para gestar um poder que está na contramão dos ideais de Jesus e que obscurece o fascínio pela mensagem cristã, portadora de um novo tipo de exercício do poder, serviçal e participativo.

Verificou-se posteriormente um crescendo no poder dos papas: Gregório VII (+1085), em seu “Dictatus Papae” (literalmente: “Ditado papal”, ou “Manifesto papal”; ou seria: “Ditadura Papal”?) se autoproclamou senhor absoluto da Igreja e do mundo; Inocêncio III (+1216) se anunciou como vigário representante de Cristo e, por fim, Inocêncio IV(+1254) se arvorou em representante de Deus. Como tal, no pontificado de Pio IX, em 1870, o papa foi proclamado infalível em campo de doutrina e moral. Curiosamente, nunca nenhum destes excessos foi retratado e corrigido pela Igreja hierárquica. Esses excessos continuam valendo para escândalo dos que ainda creem no Nazareno pobre, humilde artesão e camponês mediterrâneo, perseguido, executado na cruz e ressuscitado para se insurgir contra toda busca de poder e mais poder, mesmo dentro da Igreja. Essa compreensão comete um esquecimento imperdoável: os verdadeiros vigários representantes de Cristo, segundo o Evangelho (Mt 25,45), são os pobres, os sedentos e os famintos.
Leonardo Boff, escritor, teólogo e filósofo - em escritos em rede


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