sábado, 15 de junho de 2013

A atualidade do espírito de Francisco


Pelo fato de o atual papa ter escolhido o nome de Francisco, muitos voltaram a se interessar por esta figura singular, talvez uma das mais luminosas que o cristianismo e o próprio Ocidente já produziram: Francisco de Assis. Há quem o chame de o “último cristão” ou o “primeiro depois do Único”, quer dizer, Jesus Cristo.

Seguramente, podemos dizer: quando o cardeal Bergoglio escolheu este nome quis sinalizar um projeto de Igreja na linha do espírito de São Francisco. Este era o oposto do projeto de Igreja de seu tempo que se expressava pelo poder temporal sobre quase toda a Europa até a Rússia, por imensas catedrais, suntuosos palácios e abadias grandiosas. São Francisco optou por viver o evangelho puro, ao pé da letra, na mais radical pobreza, numa simplicidade quase ingênua, numa humildade que o colocava junto à Terra, no nível dos mais desprezados da sociedade, vivendo entre os hansenianos e comendo com eles da mesma escudela. Nunca criticou o papa, ou Roma. Simplesmente, não lhes seguiu o exemplo. Para aquele tipo de Igreja e de sociedade, confessa explicitamente: “Quero ser um novellus pazzus”, um novo louco; louco pelo Cristo pobre e pela “senhora dama” pobreza, como expressão de total liberdade: nada ser, nada ter, nada poder, nada pretender. Atribui-se a ele a frase: “Desejo pouco, e o pouco que desejo é pouco”. Na verdade, era nada. Despojou-se de qualquer título. Considerava-se “idiota, mesquinho, miserável e vil”.

Este caminho espiritual, vivido a duras penas, pois, na medida em que mais seguidores acorriam a ele, mais se opunham, querendo conventos, regras e estudos. Resistiu o mais que pôde e, no fim, teve que se render à mediocridade e à lógica das instituições que pressupõem regras, ordem e poder. Mas não renunciou ao seu sonho. Frustrado, voltou a servir aos hansenianos, deixando que seu movimento, contra sua vontade, fosse transformado na Ordem dos Frades Menores.

A humildade ilimitada e a pobreza radical lhe permitiram uma experiência que vem ao encontro de nossas indagações: é possível resgatar o cuidado e o respeito para com a natureza? É possível uma fraternidade tão universal que inclua a todos, como ele o fez: o sultão do Egito que encontrou na cruzada, o bando de salteadores, o lobo feroz de Gúbbio e até a morte?

Francisco mostrou esta possibilidade e sua realização mediante uma prática vivida com simplicidade e paixão. Ao não possuir nada, entreteve uma relação direta de convivência e não de posse com cada ser da criação. Ao ser radicalmente humilde, colocou-se no mesmo chão (húmus=humildade) e ao pé de cada criatura, considerando-a sua irmã. Sentiu-se irmão da água, do fogo, da cotovia, da nuvem, do sol e de cada pessoa que encontrava. Inaugurou uma fraternidade sem fronteiras: para baixo com os últimos, para os lados com os demais semelhantes, papas ou servos da gleba que fossem, para cima com o sol, a lua e as estrelas. Todos são irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai de bondade.

A pobreza e a humildade assim praticadas não têm nada de beatice. Supõem algo prévio: o respeito ilimitado diante de cada ser. Cheio de devoção, tira a minhoca do caminho para que não seja pisada; enfaixa um galhinho quebrado para que se recupere; alimenta no inverno as abelhas que esvoaçam por aí, perdidas. Colocou-se no meio das criaturas com profunda humildade, sentindo-se irmão delas. Confraternizou-se com a “irmã e Mãe Terra”. Não negou o húmus original e as raízes obscuras de onde todos viemos. Ao renunciar a qualquer posse de bens, rechaçando tudo o que poderia colocá-lo acima de outras pessoas e acima das coisas, possuindo-as, emergiu como irmão universal. Foi ao encontro dos outros com as mãos vazias e o coração puro, oferecendo-lhes apenas a cortesia, a amizade, o amor desinteressado, cheio de confiança e ternura.

A fraternidade universal surge quando nos colocamos com grande humildade no seio da criação, respeitando todas as formas de vida e cada um dos seres. Essa fraternidade cósmica, fundada no respeito ilimitado, constitui o pressuposto necessário para a fraternidade humana. Sem esse respeito e essa fraternidade, dificilmente a Declaração dos Direitos Humanos terá eficácia. Haverá sempre violações, por razões étnicas, de gênero, de religião e outras.

Esta sua postura de fraternidade cósmica, assumida seriamente, poderá animar nossa preocupação ecológica de salvaguarda de cada espécie, de cada animal ou planta, pois são nossos irmãos e irmãs. Sem a fraternidade real, nunca chegaremos a formar a família humana que habita a “irmã e Mãe Terra” com respeito e cuidado. Essa fraternidade demanda inarredável paciência, mas encerra também uma grande promessa: ela é realizável. Não estamos condenados a liberar o animal feroz que nos habita e que ganhou forma em Videla, Pinochet, Fleury e em outros covardes torturadores.

Oxalá o papa Francisco de Roma, em sua prática de pastor local e universal, honre o nome de Francisco e mostre a atualidade dos valores vividos pelo fratello de Assis.


Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor - escreveu o livro 'Francisco de Assis: Saudade do paraíso'(Vozes, 1999) – em escritos em rede 

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