sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Natal: um mito cristão verdadeiro



Há poucas semanas, com pompa e circunstância, o atual papa mostrou-se novamente teólogo ao lançar um livro sobre a Infância de Jesus. Apresentou a versão clássica e tradicional, que vê, naqueles relatos idílicos, uma narrativa histórica. O livro deixou os teólogos perplexos, pois a exegese bíblica sobre estes textos, já há pelos menos 50 anos, mostrou que não se trata de um relato histórico, mas de alta e refinada teologia elaborada pelos evangelistas Mateus e Lucas (Marcos e João nada falam da infância de Jesus) para provar que Jesus era de fato o Messias, o filho de Davi e o Filho de Deus. Para esse fim, recorrem a gêneros literários que se apresentam como histórias, mas que de fato são recursos literários, como, por exemplo, os magos do Oriente (representando os pagãos), os pastores (os mais pobres e considerados pecadores por estarem às voltas com animais), a Estrela e os anjos (mostrando o caráter divino de Jesus), Belém, que não seria uma referência geográfica, mas um significado teológico, lugar de onde viria o Messias, diferente de Nazaré, totalmente desconhecida, onde Jesus provavelmente teria nascido de fato. E assim outros tópicos, como detalhadamente analiso em meu livro “Jesus Cristo Libertador” (capitulo VIII).

Podemos dizer que, face aos relatos tão comovedores do Natal, estamos diante de um grandioso mito, entendido positivamente como os antropólogos o fazem: o mito como a transmissão de uma verdade tão profunda que somente a linguagem mítica, figurada e simbólica é adequada para expressá-la. É o que o mito faz. O mito é verdadeiro quando o sentido que quer transmitir é verdadeiro e ilumina toda a comunidade. Assim o Natal é um mito cristão cheio de verdade.

Nós hoje usamos outros mitos para mostrar a relevância de Jesus. Para mim é de grande significação um mito antigo, que a Igreja aproveitou na liturgia do Natal para revelar a comoção cósmica face ao nascimento de Cristo. Ai se diz: ”Quando a noite estava no meio de seu curso e fazia-se profundo silêncio, então as folhas que farfalhavam pararam como mortas; o vento que sussurrava, ficou parado no ar; o galo que cantava parou no meio de seu canto; as águas do riacho que corriam se paralisaram; as ovelhas que pastavam ficaram imóveis; o pastor que erguia o cajado para golpeá-las ficou petrificado; nesse momento tudo parou, tudo silenciou, tudo se suspendeu porque nasceu Jesus, o salvador da humanidade e do universo”.

O Natal nos quer comunicar que Deus não é aquela figura severa e de olhos penetrantes para perscrutar nossas vidas. Não. Ele surge como uma criança. Ela não julga; só quer receber carinho e brincar.

Eis que do presépio me veio uma voz que me sussurrou: ”Oh, criatura humana, por que tens medo de Deus? Não vês que a mãe enfaixou seu corpinho frágil? Não percebes que ele não ameaça ninguém? Nem condena ninguém? Não escutas o seu chorinho doce? Não vês que ele precisa ser ajudado e coberto de carinho? Não sabes que ele é o Deus-conosco-como nós?”. E ai já não pensamos mais, mas damos lugar ao coração que sente, se compadece e ama. Poderíamos fazer outra coisa diante de uma criança, sabendo que é o Deus humanado?

Talvez ninguém tenha escrito melhor sobre o Natal que o poeta português Fernando Pessoa: ”Ele é a eterna criança, o Deus que faltava. Ele é o divino que sorri e que brinca. É a criança tão humana que é divina”.

Mais tarde transformaram o Menino Jesus no São Nicolau, no Santa Claus e, por fim, no Papai Noel. Pouco importa, porque, no fundo, o espírito da bondade, da proximidade e do Presente Divino está lá. Acertado foi o editorialista Francis Church, do jornal The New York Sun, de 1897, respondendo a uma menina de oito anos, Virgínia, que lhe escreveu: “Prezado editor: me diga, de verdade, o Papai Noel existe?”. E ele sabiamente respondeu:

“Sim, Virgínia, Papai Noel existe. Isto é tão certo quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção. E você sabe que tudo isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria triste o mundo se não houvesse o Papai Noel! Seria tão triste quanto não existir Virgínias como você. Não haveria fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam nossa existência leve e bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do amor. Então, percebemos que não há nenhum sinal de que o Papai Noel não exista. Se existe o Papai Noel? Graças a Deus, ele vive e viverá sempre que houver crianças grandes e pequenas, que aprenderam a ver com os olhos do coração”.

Nesta festa, tentemos olhar com os olhos do coração, pois todos fomos educados a olhar com os olhos da razão. Por isso somos frios. Hoje vamos resgatar os direitos do coração: deixar-nos comover com nossas crianças, permitir que sonhem, e nos enchermos de estremecimento diante da Divina Criança que sentiu prazer e alegria ao decidir ser um de nós.

Leonardo Boff – em escritos em rede

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