sábado, 12 de abril de 2014

Cruz Sagrada, nossa Luz


Irmãos e irmãs,
Este Santo Domingo convida-nos a contemplar esse Deus que, por amor, desceu ao nosso encontro, partilhou a nossa humanidade, fez-Se servo dos homens, deixou-Se matar para que o egoísmo e o pecado fossem vencidos. A cruz que nos coloca no horizonte próximo de Jesus apresenta-nos a lição suprema, o último passo desse caminho de vida nova que, em Jesus, Deus nos propõe: a doação da vida por amor.

A primeira leitura apresenta-nos um profeta, chamado por Deus a testemunhar no meio das nações a Palavra da salvação. Apesar do sofrimento e da perseguição, o profeta confiou em Deus e concretizou, com teimosa fidelidade, os projetos de Deus. Os primeiros cristãos viram neste “servo” a figura de Jesus.
Assim, Jesus é o “servo” sofredor, que faz da sua vida um dom por amor, mostra aos seus seguidores o caminho: a vida, quando é posta ao serviço da libertação dos pobres e dos oprimidos. Jesus é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera vida nova.

A segunda leitura apresenta-nos o exemplo de Cristo. Ele prescindiu do orgulho e da arrogância, para escolher a obediência ao Pai e o serviço aos homens, até ao dom da vida. É esse mesmo caminho de vida que a Palavra de Deus nos propõe. Adão é o homem que reivindicou ser como Deus e Lhe desobedeceu e Cristo, o Homem Novo que, ao orgulho e revolta de Adão responde com a humildade e a obediência ao Pai. A atitude de Adão trouxe fracasso e morte; a atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.
Cristo aceitou fazer-Se homem, assumindo com humildade a condição humana, para servir, para dar a vida, para revelar totalmente o ser e o amor do Pai. Não deixou de ser Deus; mas aceitou descer até nós, fazer-Se servidor, para garantir vida nova. Jesus aceitou a morte de cruz, para nos ensinar a suprema lição do serviço, do amor radical, da entrega total da vida.
Essa entrega completa ao plano do Pai resultaram em ressurreição e glória. A humanidade inteira reconhece Jesus como “o Senhor” que reina sobre toda a terra e que preside à história. Assim, o cristão deve ter como exemplo esse Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida um dom a todos. Os acontecimentos que, nesta semana, vamos celebrar, garantem-nos que o caminho do dom da vida não é um caminho de “perdedores” e fracassados, o caminho do dom da vida conduz ao sepulcro vazio da manhã de Páscoa, à ressurreição. É um caminho que garante a vitória e a vida plena.

O Evangelho convida-nos a contemplar a paixão e morte de Jesus: é o momento supremo de uma vida feita dom e serviço, a fim de libertar os homens de tudo aquilo que gera egoísmo e escravidão. Na cruz, revela-se o amor de Deus, esse amor que não guarda nada para si, mas que se faz dom total.
A leitura que hoje nos é proposta, relato da paixão de Jesus segundo Mateus. Descreve como o anúncio do Reino choca com a mentalidade da opressão e, portanto, conduz à cruz e à morte; no entanto, não podemos dissociar os acontecimentos da paixão daqueles que celebraremos no próximo domingo: a ressurreição é a prova de que Jesus veio de Deus e tinha um mandato do Pai para tornar realidade no mundo o “Reino dos céus”.  Ao longo do relato da paixão, o Evangelho Segundo Mateus, tem pormenores importantes a serem destacados, dado sua singularidade, conforme vemos a seguir.
Mateus insiste no fato de os acontecimentos estarem relacionados com o cumprimento das Escrituras. Mesmo quando não refere explicitamente o cumprimento das Escrituras, Mateus liga os acontecimentos da paixão de Jesus com figuras e fatos do Antigo Testamento, a fim de demonstrar que a paixão e morte de Jesus faz parte do projeto de Deus, previsto desde sempre. A explicação para esta insistência no cumprimento das Escrituras deve ser buscada no seguinte fato: Mateus escreve para cristãos que vêm do judaísmo; Ele vai, portanto, fazer referência a citações e promessas do Antigo Testamento, conhecidas de cor por todos os judeus, a fim de demonstrar que Jesus era esse Messias anunciado pelos profetas e cujo destino passava pelo dom da vida.
Também Marcos contam como, no Getsemani, na altura em que Jesus foi preso, um dos elementos do grupo de Jesus agrediu com uma espada um servo do sumo-sacerdote. No entanto, só Mateus apresenta Jesus a condenar explicitamente o gesto, explicando que o projeto do Pai não passa pela violência, mesmo contra os agressores. O caminho do Pai passa pelo amor e pelo dom da vida; por isso, os discípulos de Jesus não podem recorrer à violência, mesmo que se trate de defender uma causa justa. Este ensinamento tem, neste contexto, uma força especial: é quando Jesus é vítima inocente da violência que Ele afirma de forma clara a recusa absoluta da violência: o “Reino” de Deus nunca passará por esquemas de violência, de imposição, de poder e de prepotência. Na lógica do “Reino”, os fins nunca justificarão os meios.
Só no Evangelho segundo Mateus aparece o relato da morte de Judas. O episódio deixa clara a iniquidade do processo e a inocência de Jesus. A forma como Mateus sublinha o desespero e o arrependimento de Judas deixa clara a inocência de Jesus, por um lado e, por outro,  a ação desmedida dos responsáveis pelo processo, empenhados em livrar-se de problemas, acusações e em declinar responsabilidades.
São exclusivos de Mateus o sonho da mulher de Pilatos e a lavagem das mãos por parte do procurador romano. Estes pormenores aparecem aqui com uma dupla finalidade: por um lado, Mateus quer deixar claro que Jesus é inocente e que os próprios romanos reconhecem o fato; por outro, Mateus sugere que não foi o império romano, mas sim o próprio judaísmo que rejeitou Jesus e a sua proposta de “Reino”. Os pagãos reconhecem a inocência de Jesus; mas o seu próprio Povo rejeita-O. A frase que, no contexto do julgamento de Jesus, Mateus atribui ao Povo, “o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”, deve também ser entendida neste enquadramento. Mateus explica dessa forma, aos cristãos que vêm do judaísmo, porque é que o judaísmo como conjunto está fora do “Reino”: o judaísmo rejeitou Jesus e quis eliminar a sua proposta.
Também é exclusiva de Mateus a descrição dos factos que acompanharam a morte de Jesus: “o véu do Templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos dos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram; e, saindo do sepulcro, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade e apareceram a muitos”. Através destes elementos, Mateus quer sublinhar a importância do momento. É o tipo de sinais que, segundo a tradição apocalíptica, precederiam a manifestação de Deus, no final dos tempos. Estes sinais mostram que, apesar do aparente fracasso de Jesus, Deus está ali, a manifestar-Se como o salvador e libertador do seu Povo.
Finalmente, só Mateus narra o episódio da “guarda” do sepulcro. Provavelmente, o relato de Mateus tem uma finalidade apologética… Para os cristãos, o sepulcro vazio era a evidência de que Jesus tinha ressuscitado; mas alguns grupos judeus puseram a circular o rumor de que o corpo de Jesus tinha sido roubado pelos discípulos. Mateus trata de explicar a origem do rumor e de negá-lo veementemente.
A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto daquilo que foi a sua vida. Desde cedo, Jesus apercebeu-Se de que o Pai O chamava a uma missão: anunciar esse mundo novo, de justiça, de paz e de amor para todos. Para concretizar este projeto, Jesus passou pelos caminhos da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade de um mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor para todos. Ensinou que Deus era amor e que não excluía ninguém, nem mesmo os pecadores; ensinou que os leprosos, os paralíticos, os cegos, não deviam ser marginalizados, pois, não eram amaldiçoados por Deus; ensinou que eram os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e aqueles que tinham um coração mais disponível para acolher o “Reino”; e avisou os “ricos”, os poderosos, de que o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência, o fechamento só podiam conduzir à morte.
O projeto libertador de Jesus entrou em choque, como era inevitável, com a atmosfera de egoísmo e opressão que dominava e domina o mundo. As autoridades políticas e religiosas sentiram-se incomodadas com a denúncia de Jesus, não estavam dispostas a renunciar a esses mecanismos que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não estavam dispostas a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão proposta por Jesus. Por isso, prenderam Jesus, julgaram-n’O, condenaram-n’O e pregaram-n’O numa cruz.
A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do “Reino”, resultou das tensões e resistências que a proposta do “Reino” provoca entre os que dominam o mundo. Podemos, também, dizer que a morte de Jesus é o culminar da sua vida; é a afirmação última, porém, mais radical e mais verdadeira, porque marcada com sangue, daquilo que Jesus pregou com palavras e com gestos, o amor, o dom total, o serviço. Na cruz, vemos aparecer o “Homem” Novo, o protótipo daquele que ama radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. Porque ama, este Novo Ser vai assumir como missão a luta contra o pecado, isto é, contra todas as causas objetivas que geram medo, injustiça, sofrimento, exploração e morte. Assim, a cruz mantém o dinamismo de um mundo novo, o dinamismo do “Reino”.
Assim, celebrar a paixão e a morte de Jesus é abismar-se na contemplação de um Deus a quem o amor tornou frágil… Por amor, Ele veio ao nosso encontro, assumiu os nossos limites e fragilidades, experimentou a fome, o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das tentações, tremeu perante a morte, suou sangue antes de aceitar a vontade do Pai; e, estendido no chão, esmagado contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a amar. Desse amor resultou vida plena, que Ele quis repartir conosco “até ao fim dos tempos”, esta é a mais espantosa história de amor que é possível contar; ela é a boa notícia que enche de alegria os nossos corações.
Portanto, contemplar a cruz, onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus, significa assumir a mesma atitude e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência,  explorados,  excluídos, o privados de direitos e de dignidade… Olhar a cruz de Jesus significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias; significa evitar que as pessoas continuem a crucificar as outras pessoas; significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor… Viver deste jeito pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como Jesus, é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer, o amor gera vida nova e introduz na nossa carne, a ressurreição. Durante toda esta Semana Santa, acolhamos Cristo em sua entrada triunfal, agitando nossos ramos e com o coração alegre, ergamos os olhos para Cristo em seu Amor por Deus e, consequentemente, por nós; sejamos transformados pelo Espírito de ressurreição, pela Cruz Sagrada, nossa Luz. Assim seja! Amém.

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