domingo, 23 de fevereiro de 2014

Santidade: compromisso com o mundo


Irmãos e irmãs,
Este Santo Domingo convida-nos à santidade, à perfeição. Sugere que o “caminho cristão” é um caminho nunca acabado, que exige de cada homem ou mulher, em cada dia, um compromisso sério e radical, feito de gestos concretos de amor e de partilha, com a dinâmica do “Reino”. Somos, assim, convidados a percorrer o nosso caminho de olhos postos nesse Deus santo que nos espera no final da viagem.

A primeira leitura apresenta um apelo veemente à santidade: viver na comunhão com o Deus santo, exige o ser santo. Esta santidade passa pelo amor ao próximo. Assim, o Povo tem de viver de acordo com determinadas regras para manter esta comunhão de vida com Deus. Daí que o Levítico apresenta as leis que devem orientar a vida do Povo, a fim de que ele possa manter-se na órbita do Deus santo e testemunhar a santidade de Deus no mundo.
A comunhão com o Deus santo exige que o Povo cultive, por sua vez, a santidade. Ora, ser santo significa o quê? Na “lei da santidade”, temos disposições que dizem respeito às mais variadas dimensões da vida; mas neste caso, em concreto, liga-se a questão da santidade com o comportamento “justo” para com os irmãos, membros da comunidade do Povo de Deus.  A expressão final “amarás o teu próximo como a ti mesmo” resume o comportamento que a santidade exige, quanto à vida fraterna.

Na segunda leitura, Paulo convida os cristãos de Corinto – e os cristãos de todos os tempos e lugares – a serem o lugar onde Deus reside e Se revela. Para que isso aconteça, devemos renunciar definitivamente à “sabedoria do mundo” e devem optar pela “sabedoria de Deus”, que é dom da vida, amor gratuito e total.
Paulo considera que a comunidade cristã é o verdadeiro Templo da nova aliança, isto é, o lugar onde Deus reside, onde ele se manifesta e onde ele oferece a salvação.  A nossa comunidade paroquial ou religiosa é uma comunidade fraterna, solidária, e que dá testemunho da “loucura da cruz” com gestos concretos de amor, de partilha, de doação, de serviço, ou é uma comunidade fragmentada, dividida, cheia de contradições, onde cada membro puxa para o seu lado, ao sabor dos interesses pessoais? A comunidade pode ser Templo de Deus onde reside o Espírito e viver no conflito, na divisão e no confronto?
Os cristãos são Templo de Deus, onde reside o Espírito. Isso quer dizer, em concreto, que, animados pelo Espírito, eles têm de ser o sinal vivo de Deus e as testemunhas da sua salvação diante de homens e mulheres do nosso tempo.

No Evangelho, Jesus continua a propor aos discípulos, de forma muito concreta, a sua Lei da santidade, no contexto do “sermão da montanha”. Hoje, Ele pede aos seus que aceitem inverter a lógica da violência e do ódio, pois esse “caminho” só gera egoísmo, sofrimento e morte; e pede-lhes, também, o amor que não marginaliza nem discrimina ninguém, nem mesmo os inimigos. É nesse caminho de santidade que se constrói o “Reino”.
A leitura que nos foi proposta coloca, mais uma vez, como cenário de fundo, as exigências do compromisso com o “Reino”. Sugere que viver na dinâmica do “Reino” implica, não o cumprimento de ritos ou de leis, mas uma atitude nova, revolucionária, que resulta de um compromisso interior com Deus verdadeiramente assumido, e manifestado em atitudes concretas. Exige a superação de uma religião feita de leis, de códigos, de ritos, de gestos externos e o viver em comunhão com Deus, de tal forma que a vida de Deus encha o nosso coração e transborde em gestos de amor para com os irmãos.
A perspectiva de Mateus é que Jesus não veio abolir a Lei, mas levá-la à plenitude. No entanto, considera Mateus, a Lei tornou-se um conjunto de prescrições que são cumpridas mecanicamente, dentro de uma lógica casuística que, tantas vezes, não tem nada a ver com o coração e com a vida. É preciso que a Lei deixe de ser um conjunto de preceitos externos a cumprir para conquistar a salvação, para se tornar expressão de um verdadeiro compromisso com Deus e com o “Reino”.
Mateus apresenta um conjunto de exemplos, destinados a tornar mais clara e concreta esta perspectiva. Dos seis exemplos apresentados por Mateus, quatro apareceram no Evangelho do domingo anterior; para hoje, ficam os dois últimos exemplos dessa lista.
O primeiro exemplo que o Evangelho de hoje nos propõe, o quinto da lista, refere-se à chamada “lei de talião”. A “lei de talião”, consagrada na conhecida fórmula “olho por olho, dente por dente”. Em si, é uma lei razoável, destinada a evitar as vinganças excessivas, brutais, indiscriminadas…
Jesus, no entanto, não se dá por satisfeito com uma lei que apenas limita os excessos na vingança, e propõe uma lógica inteiramente nova. Na sua perspectiva, não chega manter a vingança dentro de fronteiras razoáveis, mas é preciso acabar com a espiral de violência de uma vez por todas; para isso, Jesus propõe que os membros do “Reino” sejam capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de não resistência, de não resposta às provocações.
Para tornar mais clara a sua proposta, Jesus apresenta casos concretos. No primeiro, pede que não se responda com a mesma moeda àquele que nos agride fisicamente, mas que se desarme o violento oferecendo a outra face; no segundo, recomenda que, diante de uma exigência exorbitante, entrega da túnica, isto é, da peça de roupa mais fundamental, se responda entregando ainda mais, a entrega da capa, vestimenta que servia para proteger dos rigores da noite e que, por isso, a própria Lei não admitia que fosse retida, senão por um dia; no terceiro, exige que se acompanhe por duas milhas aquele que quer forçar-nos a acompanhá-lo por uma; no quarto, Jesus recomenda que não se ignore, nem se deixe sem atender aquele que pede algo emprestado… Este conjunto de exemplos concretos aponta numa única direção: os membros da comunidade de Jesus devem manifestar a todos um amor sem medida, que vai muito além daquilo que é humanamente exigido. Dessa forma, eles inauguram uma nova era de relações entre homens e mulheres.
O segundo exemplo que o Evangelho de hoje nos apresenta, o sexto da lista, refere-se ao amor aos inimigos. Jesus afirma que a Lei antiga recomendava: “ama o teu próximo e odeia o teu inimigo”. No entanto, embora haja na Lei antiga uma referência ao amor ao próximo, não se refere, em lado nenhum, o ódio aos inimigos. O amor ao próximo recomendado pela Lei havia adquirido, na época de Jesus, um sentido muito restrito: era o amor a esse próximo mais chegado que, quando muito, chegava a incluir todos os israelitas mas que não atingia, em nenhum caso, os não membros do Povo eleito. Quando muito, o amor ao próximo atingia, aquele que pertencia à comunidade do Povo de Deus.
O pedido de Jesus apresenta, portanto, uma verdadeira novidade e exige uma autêntica revolução das mentalidades. Para Jesus, não chega amar aquele que está próximo, aquele a quem me sinto ligado por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos; mas o amor deve atingir todos, sem exceção, inclusive os inimigos. Fica, assim, abolida qualquer discriminação; são abatidas todas as barreiras que separam as pessoas.
Deus não faz discriminação no seu amor. Ele é o Pai que não distingue entre amigos e inimigos, que faz brilhar o sol e envia a chuva sobre bons e maus, que oferece o seu amor a todos. O amor universal de Deus é a razão do amor que os membros do “Reino” devem oferecer a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. “Ser filho de Deus” significa dar testemunho do amor de Deus e parecer-se com Deus no modo de agir.
Desta forma, Jesus pede, aos que aceitaram embarcar na aventura do “Reino”, a superação de uma lógica de vingança, de responder na mesma moeda, e o assumir uma atitude pacífica de não resposta às provocações e que inaugure um novo espírito nas relações. Jesus pede, também, aos participantes do “Reino” o amor a todos, inclusive aos inimigos, subvertendo completamente a lógica do mundo.
A expressão final, “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”,  parafraseia o refrão da “lei da santidade” que encontramos na primeira leitura, “sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo”, e resume, de forma magnífica, o ensinamento que Mateus pretende apresentar à sua comunidade com estes seis exemplos, os quatro do passado domingo e os dois de hoje: viver na dinâmica do “Reino” exige a superação de uma perspectiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus, deixando que a vida de Deus, que enche o coração do crente, se manifeste na vida do dia-a-dia, inclusive nas relações fraternas.
A santidade é uma exigência da comunhão com Deus, de quem se identifica com Cristo, assume a sua filiação divina e pretende caminhar ao encontro da vida plena, do Homem Novo e da Nova Mulher. Tenho consciência de que não posso ser santo se o amor não se derramar dos meus gestos e das minhas palavras ...que não posso ser santo se vivo fechado em mim mesmo, na indiferença para com os meus irmãos, ainda que reze muito?
Para que a santidade não seja uma ilusão, temos de ter o cuidado de viver num contínuo processo de conversão, que elimine do nosso coração as raízes do mal, responsáveis pelo ódio, pela injustiça, pela exploração. Ser santo não significa viver de olhos voltados para Deus esquecendo do mundo; mas a santidade implica um real compromisso com o mundo. Passa pela construção de uma vida de verdadeira relação com os irmãos; e isso implica o banimento de qualquer tipo de agressividade, de vingança, de rancor; implica uma preocupação real com a felicidade e a realização do outro; implica amar o outro como a si mesmo,  ao aceitar o desafio de viver em comunhão com Deus, eu sou chamado a dar testemunho da vida de Deus diante de todos os meus irmãos e irmãs, ser um sinal vivo de Deus, do seu amor, da sua perfeição, da sua santidade, no meio do mundo, lutando contra todo tipo de injustiça e exploração. Assim seja! Amém. 

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