1.
Desde há quase meio século, o tema da fé se enquadra, para mim, nestas duas
frases, um de um cristão e outra de um não crente. A primeira é a profecia de
Emmanuel Mounier: no futuro, os homens não se dividirão conforme acreditem ou
não em Deus, mas segundo a postura que tomarem diante dos pobres. A outra é a
estrofe impactante de Atahualpa Yupanki: “há coisas neste mundo mais
importantes do que Deus, que um homem não cuspa sangue para que outros vivam
melhor”, o que sempre tenho visto como um bom resumo do modo como Deus se
revelou em Jesus Cristo (há coisas neste mundo mais importantes que eu…).
2.
Esta visão da fé se estrutura em duas linhas mestres do Novo Testamento:
2.1.
A primeira, em positivo, é o repetido mandamento do amor fraterno, que não
apenas o texto bíblico abarca, mas também está presente em quase todas as
religiões, embora no Novo Testamento adquira uma harmonia particular: é um
velho mandamento que se converte em “novo”, pois resume e interpreta todos os
demais mandamentos. E é um mandamento explicitamente universal: de tal forma
que não se trata apenas de amar “meus” irmãos, mas, sim, que todos os seres
humanos são meus irmãos: o adjetivo “fraterno” não limita, mas amplia o
mandamento do amor. O “próximo” não é o próximo a você, mas aquele a quem você
deve se aproximar, disse Jesus numa parábola.
2.2.
E, em negativo, a visão do dinheiro como o grande inimigo de Deus. Visão que
atravessa os Evangelhos (“não podeis servir a Deus e ao dinheiro”), os textos
paulinos (“a cobiça é idolatria” e “a raiz de todos os males é a paixão pelo
dinheiro”) e os joaninos (“se alguém possui bens da terra, vê o seu irmão
passar necessidade e não o socorre, o amor de Deus não está com ele”).
3.
Este duplo resumo da minha fé (melhor que de resumo, falaria de “coração”, pois
a realidade humana abarca muitos outros aspectos) tem hoje, após vinte séculos
de distância do mundo de Jesus, um imprescindível componente estrutural (não
apenas pessoal), que não cabe ignorar. Se a partir daqui, enxergo hoje o nosso
mundo, poderia escrever outro Manifesto que começasse: “Um espectro ronda o
mundo”. Contudo, agora, falando sério (e não ironicamente, como no Manifesto do
século XIX), esse espectro, essa grande ameaça, não é o comunismo, mas o
sistema capitalista. Por mais que se fantasie com belas palavras de liberdade
ou progresso, o coração desse sistema não é mais do que a riqueza e o poder: a
riqueza que gera o poder e o poder que gera a riqueza. É um sistema não
fraternal, cujas células-mãe tendem a conformar um mundo onde uns poucos (cada
vez mais poucos) dominam a maioria. E o momento que o nosso mundo vive,
atualmente, é aquele em que está coalhando e tomando corpo essa tendência.
Em
anos anteriores, essa tendência esteve detida por dois fatores históricos: o
socialismo da União Soviética que, mesmo com todos os seus desastres, assustou
o capitalismo e o forçou a fazer algumas concessões, e o socialismo da chamada
“social-democracia”, que procurou cumprir uma via média entre os outros dois
extremos. A queda do pseudo-império soviético colocou fim a esse equilíbrio
instável e desatou a dinâmica totalitária do capitalismo, permitindo-lhe
mostrar seu verdadeiro rosto. Não importa o que as pessoas simples perguntem:
para que querem tanto dinheiro? Para que alguém vai querer trinta e seis
milhões de litros de água, se não poderá bebê-los em toda a sua vida?… Por mais
elementares que pareçam estes tipos de perguntas, são incompreensíveis para os
narcotizados pelo deus Mamon.
A
partir daqui, parece-me que nossa hora histórica marca uma tendência quase
imparável, não a de “desenvolver o Terceiro Mundo”, como era dito antes, mas a
“tercermundializar” o mundo desenvolvido. Há poucos anos, já começamos a falar
de “quarto mundo” (os enclaves de miséria no meio do primeiro), mas essa
expressão vai ficando curta, e ficará muito mais curta quando passar a crise
econômica e, como um furacão do Caribe, deixar destruída mais da metade do
estado social que acreditávamos ter conquistado. O mundo ficará reduzido a um
ou dois por cento da humanidade, imensamente rico (mesmo repletos de lutas
internas para derrubar o outro), e uma grande maioria humana submetida a uma
ditadura camuflada de grandes palavras (civilização, progresso,
desenvolvimento, liberdade…) utilizadas como justificativas para a crueldade
dessa tirania.
Não
será improvável que algum dia essa maioria exploda incontrolavelmente, mas
também não será fácil, porque sempre existe esse colchão amortecedor daqueles
que não pertencem nem à minoria dos canalhas, nem à maioria dos infra-humanos,
desses que foram chamados “o segundo terço” e que são os que mais temem perder
sua posição, caindo no abismo dos miseráveis. Eles, sem querer, podem atuar
como para-raios de uma revolução desesperada e louca. E, além disso, os tiranos
contam sempre com o antigo recurso defensivo (panem et circenses: pão e circo)
que hoje poderíamos traduzir como “Ipad e circo”.
4.
Entretanto, não se trata de fazer profecias. A última conclusão destas
reflexões é que, se o dinheiro é o maior ídolo inimigo do homem, é assim porque
é o maior inimigo de Deus, revelado por Jesus. Da mesma forma em que
capitalismo e democracia são largamente incompatíveis, capitalismo e fé cristã
também são. As igrejas que atualmente se perguntam a respeito da descristianização
do Ocidente, acabam não percebendo isto, pois elas próprias são cúmplices desse
processo, em seus organismos diretivos. Os ateus que perderam a fé também não
percebem que seja em razão desse processo, no qual eles são apenas pequenas
gotas de água de um tsunami epocal. Desta forma, o que ficará restando do
cristianismo no Ocidente será apenas um cristianismo não cristão:
fundamentalista no dogmático e servidor do dinheiro na moral. Um cristão já
anunciado em tantas seitas norte-americanas, que são como primeiras nuvens da
tormenta que acabará vindo.
5.
Para terminar, não me resta nada mais do que evocar a frase de Ignacio
Ellacuría, da forma como costumo reformulá-la: “uma civilização da sobriedade
compartilhada” (Ellacuría dizia uma civilização da pobreza) é a única oferta de
vida que permanece para o nosso mundo. Para crentes e para não crentes. Se não
a levamos muito a sério, talvez seja o momento de ler esses capítulos que
encerram os evangelhos, mudando todo o discurso anterior de Jesus (Marcos 13 ou
Mateus 24), e começar a compreender que nem este mundo tem futuro, nem Deus
pode ter lugar num mundo como este.
Fonte:
IHU de 12 de abril de 2013 ou o site Religion Digital de 12/04/2013 - Veja também o livro:
Cristianismo: o mínimo do mínimo (Vozes 2012)
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