A partir dos anos 50 do
século passado foram se formando no Brasil, no seio das massas dos destituídos,
movimentos sociais de natureza diversa, mas todos nascidos de um sonho:
refundar o Brasil, construindo uma nação autônoma e não mais uma grande empresa
agregada e a serviço do capital mundial. Essa força social ganhou dimensões transformadoras
quando se deu a aliança entre estes movimentos populares com os intelectuais que,
não pertencendo às camadas oprimidas, optaram por elas, assumiram sua causa,
apoiaram suas lutas e participaram de seu destino, às vezes trágico, porque
marcado por perseguições, prisões, torturas, exílios e mortes, como vem
mostrando a Comissão da Verdade.
Com isso a inteligência
brasileira começou a pagar uma enorme dívida social para com o povo brasileiro.
Mas essa aliança precisa ser sempre refeita e consolidada, especialmente agora,
quando um de seus representantes chegou à Presidência e conseguiu avanços político-sociais
nunca antes realizados. Sobre ele recai toda a carga do preconceito de classe.
Daí a fúria com que vem sendo atacado com o objetivo de aniquilar sua liderança
carismática e sua ressonância mundial.
Mais do que nunca, as
universidades, onde se formam os intelectuais, não podem mais ser reduzidas a macroaparelhos
de reprodução da sociedade discricionária e a fábricas formadoras de quadros
para o funcionamento do sistema imperante. Na nossa história pátria foram sempre,
também, um laboratório do pensamento contestatário e libertário. Isso constitui
sua missão histórica permanente, que deve ser acelerada hoje, dado o
agravamento da crise geral no mundo.
O desafio maior é
consolidar os avanços sociais e populares alcançados. Por isso, a nova centralidade reside na construção da sociedade
civil a partir da qual os anônimos e invisíveis deixam de ser o que são e
passam a ser povo organizado. Sem este tipo de cidadania não existirá a base
para um projeto de reinvenção do Brasil com democracia social, popular e
cotidiana. Para alcançar esta meta histórica faz-se urgente o encontro da
universidade com a sociedade.
Em primeiro lugar,
importa criar e consolidar uma aliança entre a inteligência acadêmica com a
miséria popular. Todas as universidades, especialmente após a reforma de seu estatuto
por Humboldt em 1809 em Berlim, deram ao seu corpo os dois braços que até hoje
as constituem: o braço humanístico, que vem das velhas universidades medievais,
e o braço técnico-científico, que criou o atual mundo moderno. Elas se tornaram
o lugar clássico da problematização da vida, do homem, de seu destino, da
cultura e de Deus. As duas culturas, a humanística e a técnico-científica, mais
e mais deixam de coexistir e se intercomunicam, no sentido de tomar a sério a
sua contribuição na gestação de um país com menos desigualdades e injustiças
sociais.
As universidades são
urgidas a assumir este desafio: as várias faculdades e institutos hão de buscar
um enraizamento orgânico nas bases populares, nas periferias e nos setores
ligados diretamente à produção dos meios da vida. Aqui pode se estabelecer uma
fecunda troca de saberes, entre o saber popular e o saber acadêmico; pode se elaborar
a definição de novas temáticas teóricas nascidas do confronto com a realidade
popular e valorizar a riqueza de nosso povo na sua capacidade de encontrar
saídas para os seus problemas.
Essa diligência permite
um novo tipo de cidadania, baseada na co-cidadania: representantes da sociedade
civil e das bases populares bem como da intelectualidade tomam iniciativas por
si mesmos e submetem o Estado a um controle democrático, cobrando-lhe os
serviços ao bem comum. Nestas iniciativas populares, seja na construção de
casas em mutirão, seja na preocupação pela saúde, seja na forma de produção de
alimentos, seja na contenção das encostas contra desabamentos e em mil outras
frentes, os movimentos sociais sentem necessidade de um saber profissional. É
onde a inteligência e a universidade podem e devem entrar, socializando o saber,
propondo soluções originais e abrindo perspectivas, às vezes insuspeitadas,
para quem é condenado a lutar só para sobreviver.
Deste ir e vir fecundo
entre pensamento universitário e saber popular pode surgir um novo tipo de desenvolvimento
adequado à cultura local e ao ecossistema regional. A partir desta prática, a universidade
pública resgatará seu caráter público, será servidora da sociedade e não apenas
daqueles privilegiados que conseguiram entrar nela. E a universidade privada
realizará sua função social, já que, em grande parte, é refém dos interesses
privados das classes proprietárias e feita chocadeira de sua reprodução social.
Desse casamento entre
inteligencia e miséria nascerá um povo libertado das opressões para viver num
país mais justo, onde seja menos difícil o amor.
Leonardo Boff, Teólogo, Filósofo e escritor - em escritos em rede
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